Houve um tempo em que nascer em terras altas ou baixas do Vale do Colca, que hoje faz parte da região de Arequipa, no sul do Peru, determinava o formato da cabeça dos bebês.
Entre os anos 1100 e 1450, as famílias dos grupos étnicos predominantes nesta região andina, os collaguas e os cabanas, modificavam o crânio dos recém-nascidos usando bandagens de pano – para que a cabeça das crianças tivesse formato de cone – e pedaços de madeira – para deixar a parte de trás da cabeça mais achatada.
Longe de ser uma simples questão estética, a prática teve desdobramentos sociais e políticos importantes – e poderia ter influenciado o vínculo que essas antigas civilizações tiveram com o Império Inca, que dominou a região a partir da segunda metade do século 15.
Antes do meu estudo, nós só tínhamos os relatos dos espanhóis dos tempos coloniais (a respeito das intervenções que modificavam o formato do crânio)”,
disse à BBC o antropólogo americano Matthew Velasco, pesquisador da Universidade Cornell, nos Estados Unidos.
Seu trabalho, publicado neste mês na revista científica Current Anthropology, revelou que o que se acreditava ser um marcador étnico exclusivo dos collaguas era, na verdade,
uma prática muito mais dinâmica, que foi se transformando através do tempo”,
explicou Velasco.
O que a princípio serviria para distinguir os collaguas dos cabanos acabou unindo as duas etnias e os favorecendo na relação com os incas. Os collaguas viviam na zona alta do Vale do Colca, falavam aimará e eram especialistas na criação de alpacas, para extrair delas a lã. Segundo os documentos coloniais da época, os collaguas enfaixavam os crânios dos bebês para dar às cabeças deles uma forma mais larga na base e estreita na parte superior.
O objetivo, detalhavam os registros espanhóis, era que as cabeças tivessem uma forma similar ao vulcão Collaguata, considerado o lugar de origem mítica dessa etnia. Os cabanas, por sua vez, falavam quíchua e cultivavam milho nas terras férteis da região baixa do vale.
Eles davam aos crânios dos bebês uma forma mais achatada e alargada, pressionando a parte de trás da cabeça.
“Provavelmente usavam placas de madeira (ou seja, materiais mais duros) para conseguir esse formato”,
explicou Velasco.
Ao analisar centenas de restos ósseos humanos de vários túmulos no Vale do Colca, Velasco descobriu que, antes de 1300, a maioria das pessoas não apresentavam qualquer modificação no formato de suas cabeças.
A prática, observada em somente 39,2% dos crânios até essa época, passou a representar 73% depois desse ano, contabilizando tanto as intervenções que normalmente faziam os callaguas quanto as dos cabanas. Com o passar do tempo, contudo, a forma de cone começou a predominar em ambas as regiões do vale.
Essa homogeneidade crescente no formato das cabeças dos bebês de ambas as etnias contribuiu para a criação de uma nova identidade coletiva que
pode ter reforçado os laços sociais entre as elites durante um tempo de muita guerra segmentação social”,
afirma Velasco.
Como o estudo do antropólogo se concentra no que aconteceu na região antes de 1450, ou seja, antes da formação do Império Inca, o pesquisador acredita que “a formação de uma identidade mais integrada também poderia ter servido de respaldo às elites collaguas em suas interações com os incas “, explicou à BBC.
Há muitas evidências de que os incas e os collaguas chegaram a um acordo, que implicou o respeito às práticas e instituições tradicionais dos últimos por parte dos primeiros. Ao mesmo tempo, os incas impuseram formas de tributo a eles”.
Velasco reconhece que
talvez, a formação de uma identidade compartilhada e forte tenha ajudado as elites dos collaguas a chegar a um acordo mais benéfico com os incas (quando eles dominaram a região)”, mas ressalva que, para provar essa hipótese, serão necessárias mais informações arqueológicas do Vale do Colca, referentes à época do Império Inca.
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